Hoje faz cinqüenta dias corridos de ocorrência da maior manifestação pública da categoria de professores da rede estadual de ensino do estado da Bahia. E mesmo com corte salarial de dois meses, os grevistas, em sua grande parte, permanecem na greve.
Não é novidade, na sociedade ocidental o manifesto em forma de greve. Os primeiros indicativos, segundo o historiador Thompson, eclodiram na Inglaterra e se espalharam pelo mundo nos moldes do Iluminismo com forte influência da revolução francesa. Esse recorte contextual-ideológico demarca a intelectualidade, marca da racionalidade, presente no movimento grevista.
É bom também salientar que, dentro do modo de produção capitalista, a greve é um mecanismo para suavizar, e não resolver, a opressão da mão-de-obra que se vende ao esquema da mais-valia, onde os lucros agregados se condensam nas mãos dos proprietários dos meios de produção, da propriedade privada e das gestões dos órgãos sociais. A greve no capitalismo, em outras palavras, se configura como uma estratégia para reivindicar a minimização da diferença daquilo que se produz com a força do trabalho e aquilo que se recebe por trabalho prestado.
Toda greve, sendo assim, tem seu fundo de razão. É posto a debate moldes de desigualdade com que a nossa sociedade está organizada. E por mais contraditória que seja, a nossa sociedade, como já dizia Karl Marx, é desigual e combinada. A desigualdade está presente nas lutas de classes sociais e o ajustamento dessa desigualdade no patamar da relatividade/ dependência que existe entre elas, essa ultima caracteriza a combinação.
O que há de novo na greve dos professores do estado da Bahia? Exatamente nada, se formos analisá-la com base no materialismo histórico. O estado é o meio de opressão, porque ele capitalizado, detém parte dos meios de produção e o controle e utiliza-se dessas para vigiar, punir e oprimir. Não me cabe realizar uma leitura partidarista, mas entendo que, mesmo com a mesa virada para a antiga direita que dominou o cenário político do estado por anos consecutivos, as estratégias da nova direita-antiga esquerda se apresentam tal como o qual.
O que se percebe é que as raízes de enfrentar a greve estão muito mais além do que uma questão partidarista. Diria o sociólogo Boaventura de Souza Santos que a consciência que é utilizada para tratar esse fenômeno está nos moldes do colonizador. A forma como a sociedade encara, se divide em opiniões múltiplas e posturas, com relação à greve, desnuda aquilo que chamarei de “ranço da colonização, branca, européia, portuguesa, burguesa e colonialista”, num país onde o trabalho começou forçado, braçal, com índios e negros. Esta aí a chave da compreensão.
Temos internalizado que o trabalho intenso não é coisa de burguês, visto que a exploração da mão-de-obra sempre foi de exploração e não de acumulação e ascensão social – longe de mim afirmar que não existe mobilidade social no Brasil.
E como surgiu a escola no Brasil? Existe um longo debate sobre esse tema, mas em suma ela apareceu para a classe dominante para que eles ocupassem seu tempo com as letras e as artes. Por isso o esforço das campanhas políticas de disseminar a educação para todos, e desconfio que jamais será, pois ela não foi criada para esse fim. Os docentes, sobretudo os jesuítas, ou as filhas dos senhores coloniais é quem ministram as aulas régias, cruzando uma perfeita harmonia entre religiosidade e gênero feminino que vão marcar profundamente a atividade docente até os dias atuais.
É com base nessas afirmativas, que estão as justificativas do não-greve ou do retorno dela antes mesmo do seu desfecho. Está embutida a falsa ( ou ingênua) idéia de que a docência é uma das poucas profissões que é movida por várias afetividades, e estas mergulhadas em uma simbiose religiosa e feminina. O docente trabalha por amor! Ao longo da história o rótulo se repetiu e se tornou uma verdade quase que inquestionável. O que criticamente pode ser considerado como uma genealogia da docência, ou seja, a criação visando à dominação, ao empoderamento da docência, para vigilância e punição dos corpos pelos grupos dominantes, entre eles o Estado. E essa estratégia nem só domina os alunos para respeitarem religiosamente seus professores (o que na atualidade tem sido uma realidade de desrespeito de ambas as partes no cotidiano escolar), mas dominaram os professores e os paralisam muitas vezes na racionalidade da luta de classe.
Aqui então me aproximo do tema dessa matéria. Retirolândia, um município pequeno, historicamente carente no que se refere a políticas educacionais, seria aqui um exemplo clássico do descaso para com a educação no Brasil. Crianças exploradas pelo trabalho infantil, em rígidos moldes numa família tradicional e operária, com informações distorcidas sobre o mundo e as coisas, compõem a base da história de vida de boa parte dos pais dos jovens alunos dos dias de hoje. Mal escolarizados, ou pior ainda, não escolarizados. Como essas pessoas entenderão a intelectualidade da greve?
Parece ser um jogo de coincidências, 50 anos de municipalização, 50 dias de greve!. São duas histórias, uma dentro da outra que se transbordam numa análise crítica. Os professores efetivos da rede do estado da Bahia de Retirolândia ousaram nessa atual greve e permaneceram até o dia de hoje no manifesto de classe que conta com uma série de arbitrariedades do governo. Além do corte salarial, do desgaste emocional acompanhando os noticiários a fim de ver o desfecho disso tudo, conta com uma considerável incompreensão da sociedade local que não entende, ou não se abre ao entendimento da greve.
Por mais ingênuo que seja o discurso de “quem sai prejudicado com tudo isso?” é o mais eficiente dos discursos na greve dos professores. Essa frase infantil é mais adulta do que se pensa. Ela tem o poder de transferir a responsabilidade de um Estado que oprime, que avacalha a educação, sucateia a instituição para a práxis docente. E os professores quando param de dar aula (e aqui cabe ressaltar que para a sociedade e o governo qualquer aula já está bom demais) deixam de amar seus alunos. Como os pais dos alunos da escola pública são operários o importante é que a escola funcione de qualquer forma, para que os professores acumule no seu ofício a obrigação da maternidade/paternidade no seu turno de trabalho, para cumprir um papel que caberia a família.
Finalmente vi uma equipe docente forte para resistir a muitos dias de taxação local. E essas taxações estão potencializadas por conta das redes sociais. No facebook, MSN as cobranças são constantes. Alguns professores voltaram e usam o discurso da afetividade para fazer valer seu regresso: “meu coração me manda voltar”. Mas, quando se trata de condições trabalhistas, é hora de usar a razão e não as emoções descontroladas. A escola da forma como está, não apenas com a questão do salário do professor que é péssimo em todo país, mas a infra estrutura, o projeto que põem em xeque a qualidade escolar, pode afetar, aí sim, em sérios riscos cardíacos para os professores, que adoecem nas salas de aulas medíocres do Brasil.
Como a maioria da população de Retirolândia tem descendência direta dos negros e índios, herdou boa parte da lavagem cerebral que fizeram na colonização com seus ancestrais. Oprimidos, sem informações, sem crítica aceitam determinados discursos sem questioná-los. Aqui, posso falar isso com propriedade, as pessoas não são as melhores em reivindicar seus direitos, são ótimas para dar um jeitinho aqui outro acolá. Os professores contratados voltaram para sala de aula. Obrigados sob vários aspectos. Dois deles: o medo de perder o contrato e aumentar a fila dos desempregados do município e outro não menos importante pressionados pelos políticos ou cabos eleitorais que os puseram nesse trabalho para sustentar o grupo político do governador do estado. Mas o discurso não é bem este, é esse: “Voltamos por que os alunos são os mais prejudicados”. Aí falta-lhes a coragem para assumir que a genealogia da docência é uma farsa e no cotidiano escolar, poucos professores se sacrificam para lutar e se expor para um projeto educacional de verdade.
Trato dessa questão com certa radicalidade por que ontem, em uma assembléia para redefinir os contornos locais da greve, pudemos notar que o horário especial criado pela direção da escola não seguia rigorosamente padrões trabalhistas e nem éticos. Professores pagos para cumprirem 20 horas semanas deram apenas a metade (ou pouco mais) de sua carga horária, forçando a realidade e criando a ilusão de que voltaram a trabalhar. Acredito que essa não é a postura mais adequada para os professores que voltaram e se dizem amar os alunos. A junção de duas turmas, como foi verificada nos turnos da manhã e tarde elucida que os docentes que voltaram não estão programados em suas horas/aulas para fazer a escola valer a pena, pelo menos em suas cargas horárias.
Eu amo ser professor, como qualquer outro profissional realizado em si ama sua profissão. Não amo mais que ninguém. Amo na medida, por que é loucura amar descontroladamente o trabalho, já que ele é opressor. Tenho prazer de estar na escola mesmo quando não tenho pais participativos no decorrer do ano letivo, quando não tenho os melhores alunos (aqueles que estudam, que discutem, que aproveitam os recursos didáticos) por que sei que a estrutura se encontra desta forma por que a educação nunca foi prioridade.
Parabéns aos professores que estão lutando em greve. Não existe na história de nosso estado aula mais rica de cidadania e organização social para o século XXI. E aos colegas que voltaram, nada disso me é estranho. Imagino que para uns voltar agora lhes custa muito caro, mas por outro lado sempre existiram os professores alienados. Em Retirolândia a opressão de anos de gestão municipal de poder centralizado fizeram vale o poder do cabresto. As pessoas temem a ousar e se fazem de desentendidas quando o assunto é reivindicação. Como exemplo recente, é só observar a participação dos professores municipais na câmara de vereadores na ultima segunda reivindicando a proposta de aumento salarial. Eu entendo que o cabresto não é um mecanismo de um grupo apenas, por que quem domina também está legitimando. Como citei antes isso está para além do partidarismo e faz parte da contradição da luta de classe. O bom é que estamos unidos numa proposta estadual com alunos que nos entendem e pais que esperam ansiosos a resolução desse dilema. E até onde for resistência estarei firme para dizer que sei brigar por aquilo que é meu de direito.
Ms. Matteus Freitas de Oliveira